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"AFRODITE A MORTE E A FESTA" - HOJE É DIA DE HISTÓRIA...


â.f.b. - colagem/experimentação - 2015


"AFRODITE A MORTE E A FESTA


Era quinta-feira. Do alto do Bonfim, os sons faziam-se presentes desde muito cedo. Cerca de 04:30’h, já escutavam-se o burburinho em torno da Igreja. Sempre, na segunda quinta-feira do mês de janeiro, depois do dia do Santo Reis, acontecia a Lavagem do Bonfim. Isso há mais de duzentos anos... Como então ter “direito” a morrer nesse dia de festa? Mas, na sexta casa, à esquerda de quem sobe a ladeira que conduz à Colina Sagrada, na Rua Afonso Barbuda, estava Afrodite, junto ao caixão de sua mãe, sentindo-se uma pessoa solitária e má.

    Os curiosos transeuntes, quando em vez, olhavam de soslaio para dentro da casa amarela, e viam o esquife marrom e luzidio. Alguns diziam: “_Senhor do Bonfim que guarde sua alma!”. Outros se benziam, “cuspindo” fora: “_Deus é mais!”. Simples e seco, enquanto viravam o rosto da cena triste, e apressavam os passos para alcançarem a Igreja e os festejos ainda iniciais.

    Afro completara 20 aninhos há dois meses atrás. Comemorou, com suas amigas, a bolsa de estudos que ganhou para estudar na França. Ainda conseguiu aproveitar umas duas semanas, antes da mãe adoecer, para preparar a viagem, as roupas quentes, pois, se na Bahia era verão, na Europa o inverno estava terrível. De certo modo, para ela, estudar fora era uma forma de se afastar de toda responsabilidade que a bondosa Rosa lhe impôs. Ficou viúva cerca de 15 anos atrás, e preferiu devotar-se à memória do marido... E olha que Rosa era bonitona. Dotada de um corpanzil tradicionalmente renascentista, arredondado e suculento, pois, tivera a sorte de, nessa terra, a genética favorecer as mulheres com umas belas bundas.

    Bem, Rosa não se aproveitou de seus “dotes” feminis, para “dor” de alguns conhecidos de Jacinto, o finado marido, os quais, mal esperaram o corpo “esfriar”, e já no Campo Santo, enquanto Jacinto estava sendo enterrado, trataram de oferecer os préstimos à formosa e gostosa Rosa. Ela enviuvou no auge dos seus 25 anos. A pele estava boa, as coxas grossas, o cabelão negro e chamativo, que parecia uma mata extensa, na qual, os “solidários” amigos do Falecido, queriam se perder... Foi em vão, tentaram exaustivamente por 5 anos, entretanto, foram desistindo aos poucos, um por um. Trataram de encontrar, coxas menos chamativas, porém, não menos sedutoras, afinal, a vida continua sempre. Todos, menos um: Vivaldo, um negão sinuoso, alto, de ombros e sorriso largos, um vivaldino, já no prenúncio da terceira idade, que na juventude, assombrava os bairros de Roma, Uruguai, e adjacências. Um mulherengo e desordeiro, que somente amansou, quando o pai, esgotadíssimo, obrigou-o a entrar na Marinha. Aliás, foi lá que conheceu e tornou-se amigo de Jacinto.

    Enfim, Vivaldão, nutriu sentimentos por Rosa, desde quando retornou a Salvador, quase vinte e um anos depois de partir, e visitou, pela primeira vez, o sacrossanto lar do amigo. Desde então, nunca mais perdeu um almoço dominical na casa da jovem e dedicada mulher com nome de flor. Ou melhor, na casa do amigão Jacinto. Mas, Vivaldo fez por merecer a confiança total do casal, sempre esteve junto àquela família, também nos piores momentos. Inclusive agora. Enquanto praticamente todos se foram com o passar dos anos, lá estava Vivaldo consolando a moça. Sempre se entenderam, desde quando ela era uma criança sapeca, que parecia gostar mais dele, do que de Jacinto, seu pai.

    A filha chorava inconsolável desde a noite anterior, quando viu as prestativas freiras de Irmã Dulce lavar o corpo da mãe, vestir, e arrumar no caixão de luxo, escolhido delicadamente por Vivaldo. Enquanto deitavam o corpo de Rosa, e o ornamentava com flores, ela teve certeza de que estava sozinha no mundo, mas também, livre de tudo! Pela primeira vez, em toda sua jovem existência, Afrodite podia ir aonde quisesse, fazer o que quisesse, sem ter nenhum peso sobre si. Eis porque se considerava má: A morte da mãe a libertou...

A moça evitava olhar para o pequeno grupo que velava a Rosa morta. Sentia-se oprimida, vigiada... Talvez por isso, tenha passado grande parte da madrugada exercitando os dotes de cozinheira e anfitriã, lhe ensinado desde a mais tenra idade, pela mãe. Preparou sonhos, bolo de carimã, que é uma guloseima difícil de fazer, empadinhas, café, chás, e refrigerantes, tudo com esmero, e depois, os serviu educadamente a todas as presentes. Fez o papel que dela esperavam, no momento lúgubre. Que nessa terra, os costumes de soterrar a dor com a alegria, acabam transformando a Morte em um momento contraditório, pois, torna-se quase agradável, com as lembranças sobre a pessoa morta. Quem morre na Bahia, é revivida pelas pessoas que a conheceram durante a vida. Sempre permanece viva, enquanto viver alguém que a conheceu...

Dava as 08:00’h e o povo tomava conta dos derredores. Escutavam-se a batucada. O samba “comia no centro”! Os tradicionais sambas de roda reviviam, mais jovens do que nunca, e concorriam com as bandas que tocavam todo tipo de música. Em alguns momentos tudo se confundia: as músicas, as vozes, os louvores, porque, a Lavagem do Bonfim, é uma festa religiosa, dos candomblés, dos cristãos, de tudo quanto é gente! Oxalá, Jesus, e os Jegues, as danças, as músicas e a fé, faziam uma multidão caminhar cerca de oito quilômetros, sob o extenuante sol do verão baiano, e ainda, cantar, dançar, e dizer alegremente: “_Quem tem fé, vai a pé!”.

As 08:30’h, Afro foi até o quarto de Rosa. Abriu a porta e sorriu terno, pois, emanava uma paz incrível do ambiente. Das janelas arcadas entrava uma brisa fresquinha, adornada por uma claridade suave, domada pelas cortinas transparentes. A moça olhou longamente o quarto da mãe, caminhou até a janela e olhou a Baixa do Bonfim, o mundão de gente, andando, conversando. Outras, dançando, outras comendo e bebendo, pândegas! Tanta vida! A moça sorriu aliviada, sentou-se na cadeira rococó, que ficava em frente à penteadeira, repleta de perfumes, e maquiagem, pois Rosa sempre foi muito vaidosa, e arrumou-se. Limpou o rosto. Passou pó e batom. Depois, penteou cuidadosamente os cabelos enormes, como os da mãe, mas, muito crespos, diferente dos cabelos lisos de Rosa, e saiu, bela e trigueira, para entregar a Mãe à Terra.

Vivaldão sorriu e a abraçou, dizendo: “_Isso filha! Sua mãe ia gostar de lhe ver desse jeito! Como lhe ensinou!”. Depois a soltou suave, e instruiu os jovens marinheiros a carregarem o caixão e ajeitar no carro cedido pela Marinha, pois Rosa era viúva de um oficial, e amiga de outro. Lá foram as freiras, companheiras de caridade de Rosa, há anos, pois, logo depois que o marido faleceu, ela tornou-se voluntária nas obras de assistência aos pobres, criadas pela Santa Irmã Dulce. Apesar das ruas principais estarem barulhentas e tomadas de gente, descendo a Rua Afonso Barbuda, dava para chegar a ruas menores, alcançar a Boa Viagem, até chegar à simpática orla da Ribeira, com suas pitorescas embarcações ancoradas, e de lá, passar por Roma e Mares, e escapar por uma das ruazinhas da Calçada, subir a Baixa do Fiscal, muito engarrafada, por sinal! Alcançar a Estrada da Liberdade, vencida a custo, pois, a Cidade de Salvador tem muitas áreas de escapes, para quem anda a pé, e o povo as tomava, para ir ao Bonfim.

O último “passeio” da falecida Rosa, demorou mais de 02:00’h, até chegar ao Cemitério do Campo Santo. Afrodite estava bem. Sentia-se renovada, e boa novamente. A vida a chamava. A bonita arquitetura do Cemitério a lembrou da viagem, e que, em Paris tinha também uma bela necrópole, muito visitada por turistas. Como o Campo Santo. Tinha atrações, pessoas famosas enterradas... depois das homenagens, também sua jovem mãe. Rosa morreu aos 40 anos de idade. Encerrada no túmulo da família de Jacinto... (...)"

continua no livro: "crônicas de são salvador da bahia no século XXI"


ângela frança de brito. salvador-bahia-brasil, 23/08/2022