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MAMÃE SAPECA! MAMÃE SAPECA!

"Mamãe Sapeca! Mamãe Sapeca!

â.f.b. - "flouzinha" - desenho - 2017 - fragmento

    Mal abri os olhos, lá estava ela me namorando com um olhar terno e satisfeito. Era assim, quase todas as manhãs, Mamãe me acordava para o café, com uma expressão de êxito interior, como se, o simples fato de me ver, tocar, cuidar de mim, lhe fizesse um bem enorme. Certa de que era amada, fazia-me manhosa, bocejava, e me embalava, enquanto postava-se encolhidinha, para ser acariciada pelos braços quentes de Mamãe, que, me envolviam deliciosamente, como a acalentar um bebê. Ficávamos minutos agarradinhas até ela, decidida, ordenar: _Vamos Mariana, hora de levantar! Fingia-me então zangada, virava-lhe as costas amuada. Ela puxava-me forte e gostoso para junto de seus braços, mais uma vez, e beijava-me repetido. Falava baixinho ao meu ouvido: _Vamos menina linda, hora da escola! Depois saía para cuidar das coisas... Até os doze, ou treze anos, ela acordava-me de manhã, me amando explicitamente. Entretanto, em um dia de sábado, algo mudou nossas vidas...

Naquele dia em especial, insisti muito para Mamãe me levar ao Parque da Cidade, lá pros lados do Itaigara, tinha “más intenções”, pois, o verde lugar, ficava na rota dos shoppings, e é claro, que ela não resistiria ao apelo choroso, que pretendia fazer, mais tarde, depois da diversão. Fomos. Chegando lá, desgrudei das mãos dela, e corri feito uma louca, como as meninas criadas dentro de casa, o espaço aberto me atraía profundamente. Corri, saltei, pulei aos trotes, como um animalzinho, até alcançar a estátua do Mestre Confúcio, e escorar-me nela com um abraço. Olhei pra Mamãe, e, ao invés de encontrar olhos enamorados, vi susto e aflição, enquanto um senhor com mais de cinquenta anos, afastava-se dela. Cantarolava uma música velha. Depois do encontro inusitado, Mamãe não conseguiu concentrar-se em mais nada. Segurou-me pelo braço, e saímos do Parque apressadas.

    A semana inteira passou por sobre meus desejos de consumo, sobre o cotidiano de Mamãe, pois, seus olhares matinais não mais se dirigiam a mim. Estava sempre distraída, olhando para a “verdade que estava lá fora”, a qual, mesmo não tendo corpo ou mente, destituiu-me dos mimos e devoção materna. Hoje sei que esses eram pensamentos exagerados, mas, na época, tinha treze anos, e era tratada como se ainda tivesse sete ou oito anos, nessa fase onde as meninas ainda são vestidas de cor-de-rosa, e por baixo do jeans ou saia rodada, trajam calcinhas com estampas de florzinha. Acontece que já tinha treze anos, faria quatorze em setembro, entretanto, Mamãe ainda me fazia usar tons rosáceos, e calcinha infantil, que para meu corpo avantajado, tinha que ser dos tamanhos extras, pois tinha uma bunda grande e arrebitada, portanto, possuía todo o direito de exigir, daquela mulher, completo amor e devoção, portanto, fiz-me zangada, com seu desprezo.

    Era sábado, e Alice entrou pelas portas dos fundos, sem reservas, passou por mamãe e lhe beijou no rosto, perguntando: _Mariana acordou? _Sim! Respondeu seca, apontou em direção à sala, ainda olhando pela diminuta janela, que ficava logo acima da pia... As observava do sofá. Mal Alice ultrapassou a porta, fiz um gesto de silêncio, e a chamei com as mãos. Sussurrei: _Vamos pro quarto, lá, ela não pode nos ouvir...

    Alice era a única amiga que Mamãe me deixava ter contato, pois a garota era uma “santa”. Uma “santa do pau oco”, ao bem da verdade, que, graças a um pai viúvo e rígido tinha que se vestir com roupas severas, como as pessoas de sua religião. No entanto, vestia-se como ele queria, porém, agia como bem entendia, quando estava fora de seus domínios paternos. Ali era uma periguete, conhecida nos becos do Garcia, Liberdade, Engenho Velho da Federação, e todos os bairros de Salvador, onde jovens bandas tocavam um samba diferente, cujo som repetitivo e cadenciado, quase que “obrigava” as garotas a rebolarem até o chão. Alice quando entrava nessas rodas, suspendia a saia até a cabeça, e “ralava gostoso”, bem devagarzinho, levando a garotada à loucura... Se seu pai a visse...

    Fechei a porta do quarto, e desatei a lamuriar minha nova sorte: _Mamãe não me quer mais como antes Alice! Queixei-me chorosa, como se fosse mesmo uma criança de sete aninhos... Ela encarou-me um tanto surpresa, depois caiu na risada: _Rá! Rá! RRÁ rá!! Mariana você não existe! Disse-me limpando as lágrimas dos olhos. Chorou de rir, e só parou, quando reparou meu semblante fechado, então exclamou: _Foi mal! Não quis rir de você... Não conseguiu completar a frase, e caiu na gargalhada de novo. Quase bati nela, mas, fragilzinha, atirei-me na cama e chorei copioso. Somente então Alice se compadeceu, deu umas palmadinhas reconfortantes no meu braço e falou: _Conte o que está acontecendo, Ma, não estou entendendo nada...

    _Mamãe está doente ou coisa parecida, porque me despreza! Desde a semana passada, não me beija, sequer se despede de mim quando vou pra escola! Falava com uma vozinha fraca, enquanto Alice me lançava olhares reprovadores, então revelou algo que me fez desconfiar ainda mais de Mamãe: _Talvez esteja preocupada com o novo vizinho que se mudou pra casa branca... _Que vizinho? Quis saber. Ela esclareceu: _Um velho capenga e esquisito. Oh! Homem feio!!! Olha que quando entrei, sua mãe não parava de olhar pra casa dele. Tinha um olhar tão distante!! Levantei em um pulo com o dedo em riste, e falei irritada: _Não disse que Mamãe está com problemas! Ela e eu somos almas gêmeas minha filha! “Unha e carne”, oh! Fiz um gesto com os dedos, para demonstrar melhor o quanto eu e aquela mulher éramos íntimas.

    Alice, uma cristã experiente, pois, já nascera no meio, experiente e safa, sabia que as coisas não eram tão “simples”, o quanto pregavam seu livro sagrado, seu pai, e minha ingenuidade... Encolheu os ombros, resignada, e falou tranquila: _Não se preocupe, que vou saber logo qual é a daquele velho. Logo, logo sua mãe vai lhe amar de novo... Depois saiu do mesmo jeito que entrou: pela cozinha, porque precisava fazer uma boquinha antes de ir. Quando as lágrimas secaram, resolvi sair do meu esconderijo, e procurar Mamãe. Ela também saíra. Sem me avisar. Fiquei ainda mais “magoadinha”, então, como a boa garota em crescimento que era, resolvi atacar a geladeira e comer coisas proibidas para a manhã, segundo o “código” daquela mulher; Me enchi de sorvete com calda, bolachinhas recheadas, e tudo mais de suculento e “desafiador”, que pudesse desagradá-la.(...)". 

 autora: ângela frança de brito, do livro: "crônicas de são salvador da bahia no século XXI"

+: https://www.amazon.com.br/Cr%C3%B4nicas-S%C3%A3o-Salvador-Bahia-S%C3%A9culo/dp/8592136504

https://agbook.com.br/book/241449--CRONICAS_DE_SAO_SALVADOR_DA_BAHIA_NO_SECULO_XXI


ângela frança de brito. salvador-bahia-brasil, 11/08/2022